Atuar na Defesa Civil é um desafio nas circunstâncias dos fenômenos climáticos que estão submetidas as pessoas no sul do Brasil. Mais do que socorrê-las nos momentos difíceis e inimagináveis da vida dessas vítimas, atuar nestes desastres é presenciar os dramas que vão marcar individualmente a todos os envolvidos. Jamais será possível esquecer uma Senhora de 86 anos que perdeu tudo, desde o marido e a casa onde vivia desde os 20 anos, até a alegria de viver, relatada após oferecer a ela uma única atitude após ouvir o seu relato: um abraço apertado. Muito menos será possível tirar da memória a história de outra idosa que foi carregada pelas águas de madrugada por quase 20km ao longo do rio que superava os 22metros de altura. E só sobreviveu por que não sabia nadar e conseguiu com forças, que não sabe de onde tirou, para se manter sobre uma folha de zinco no meio da escuridão.
Mas esses fenômenos revelam o tamanho e a grandeza da natureza. Quando KRENAK escreveu que o nosso compromisso é segurar o céu algumas pessoas incrédulas até manifestaram sua descrença nas palavras desse representante dos povos primitivos. Mas hoje podemos notar que esse cientista e escritor real e comprovadamente tem propriedade no que fala e divulga. O homem branco e seu esforço capitalista, parece, que está sendo chamado a prestar contas de todo aquele movimento iniciado no sec XVII, XVIII e XIX, quando a revolução industrial dissolveu os corpos agrários e os atraiu para a urbe e para a exploração da mão-de-obra, às custas de condições de vida sobre humanas.
Pouco à pouco os resultados de toda essa dinâmica, que para alguns se revelam desenvolvimentista, vem sendo apresentada. A modernidade e a globalização já demonstraram todas a sua capacidade de destruição de espécies não-humanas e humanas. A solidariedade já não compõe mais se quer o espectro do imaginário do ser humano "moderno" e muito menos a noção de preservação da condição de vida mínima e satisfatória nos territórios e nas paisagens. As cidades crescem em velocidade. A mecanização do campo surge como alternativa para alimentar tanta gente nesses espaços que tornaram o campo um ambiente mecânico.
Ademais, nos territórios onde o enraizamento ainda procura manter o seu espaço, já se nota alguns resultados de um processo civilizatório que amarga índices pouco recomendáveis e que, no campo socioambiental, é possível perceber o avanço de uma onda desconcertada ambiental e socialmente. E é neste espaço ambiental que os danos psicológicos e materiais alcançam os padrões que os danos sociais já ofereciam aos diagnósticos cansativamente publicados, debatidos e discutidos por cientistas, políticos, atores dos campos públicos e privados, e pelas pessoas que vivem nestes ambientes suscetíveis a desastres que nunca foram vistos.
No vale do rio taquari já houveram diversas enchentes e já são rotina na vida das pessoas e do poder público municipal. Mas nenhuma delas superou esses eventos ocorridos em setembro e novembro de 2023. Duas cidades foram literalmente destruídas: Muçum e Roca Sales. De uma vida pacata e simples, os moradores passaram para um futuro incerto e incorriqueiro. A cada chuva, que antes era salvadora, as pessoas se alertam e se alvoroçam em busca de informações sobre o tamanho da chuva e as possíveis consequências. Móveis para o alto e as pequenas conquistas materiais viram alvo ou da água do rico rio taquari, ou dos saqueadores na iminência de um necessário abrigamento público.
Os resultados dessa dinâmica ainda não são possíveis totalmente serem percebidos, considerando o esforço do poder público em vencer os obstáculos impostos, que vão desde a burocracia necessária até a falta de qualificação dos atores locais. O mais próximo da realidade seria a informação de que essa geração que vive nesses locais não terão mais a mesma vida e, se não adotarem posturas diferentes, provavelmente colocarão em risco de novo a sua existência e daqueles que podem contar suas histórias. Mas nada será mais fundamental do que as políticas públicas orquestradas pelos municípios. É lá onde a vida acontece, já dizia um cientista. É lá onde as ações necessárias que se desenvolvem através do dinheiro público estão próximas da vida das pessoas, dos moradores.
Portanto, os desastres climáticos que desencadearam tamanho prejuízo no vale do taquari precisam ser foco de análise dos campos sociais, econômicos, políticos e ambientais. Mais do que apresentar rápidas soluções, as análises precisam ser a chave de novos processos nestes campos para que se observe as mudanças importantes para evitar que as pessoas precisem passar por tudo isso de novo. A vida precisa ser preservada, em todos os sentidos. "O amanhã não está a venda".
Figura 2 - Rio Taquari nas proximidades do município de Santa Tereza - RS
Fonte: Acervo do autor.